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quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Aculturando

Esse post vai ser dividido em duas partes, a primeira sobre o meu trabalho, o que eu faço e como tem sido e a segunda sobre as experiências que tenho tido por aqui de forma geral. Infelizmente to com falta de fotos porque a minha câmera é grande e chama atenção e por isso eu evito sair com ela na mão preferindo deixar na mochila. Só que tem havido alguns momentos que eu estou sem a mochila, então.. menos fotos..

Trabalho
Essa semana comecei a trabalhar. Entro todo dia por volta das 7h45 e saio em torno das 18h nos dias normais e meio período aos sábados. O escritório da empresa por enquanto é simples e um pouco tumultuado mas nada longe de uma pequena empresa brasileira. Em breve iremos nos mudar para um lugar mais chiquetoso. 

O meu cargo é de Asset Valuation Manager. Mas em português claro, que porra é essa? Explico. A VTrust é uma empresa é do ramo de imobiliário (Real Estate) e trabalha com: 1) Desenvolvimento imobiliário, que significa comprar terreno, construir e vender; 2) Aluguel de Apartamento com serviços inclusos, inclusive moro em um deles muito bom por sinal e recomendo aos que vierem pra ficar bastante tempo por aqui; 3) Aluguel de Escritórios com serviços inclusos; 4) Valuation de PP&E (Property, Plant and Equipment). Digamos que uma empresa qualquer compra um prédio e monta uma fábrica. Passa a ser parte do seu ativo permanente um terreno, um prédio sobre o terreno e a planta industrial. Todos esses itens (exceto o terreno) sofrem depreciação ao longo do tempo e são "zerados" no balanço no decorrer dos anos. Porém ocorrem algumas coisas: 1) Terrenos geralmente valorizam mas tal movimento não é captado pela contabilidade convencional; 2) Prédios e Equipamentos desvalorizam de forma muito mais acelerada do que a depreciação registrada contabilmente. Ou seja, as empresas que realmente querem (ou que precisam) ter claramente o valor de seu patrimônio precisam conduzir reavaliações com certa freqüência e tal postura é oficialmente exigida pelos países que adotaram o IFRS (International Financial Reporting Standards). Se o ativo está superavaliado, devemos ajustá-lo registrando uma perda e se estiver subavaliado, registrar um ganho. As empresas as vezes tendem a querer manter seus ativos subavaliados porque isso gera indicadores econômicos pseudo-melhores e também porque evita o impacto de pagar um alto IR devido à reavaliação positiva. 

No caso específico aqui do Camboja, as reavaliações visam acertar o balanço de várias empresas locais que pretendem futuramente abrir capital na bolsa local recentemente criada. O governo está sistematicamente preparando empresas de infra-estrutura pública para abrirem seu capital. É uma tentativa de delegar à iniciativa privada o que o poder público está com dificuldade de fazer. 

Explicado o contexto, eu vou gerenciar uma equipe de avaliadores e pesquisadores pra coletarem informações, analisarem e emitirem os pareceres sobre os ativos dessas empresas. Essa semana estou em fase de conhecimento dos cálculos, metodologias, modelos e da própria equipe e empresa como um todo. Nas próximas devo ir ficando cada vez mais perto do dia-a-dia e em outubro devo assumir o leme de um projeto completo.. frio na barriga..

Experiências

1. Faço parte do trânsito maluco

Pois é. Comprei uma bicicleta! O Eric conseguiu comprar a dele por US$ 32, mas eu depois de praticar exaustivamente a tática de "sair andando" da negociação não consegui preço mais baixo de US$ 40 para uma bike razoavelmente boa. Não sei se é porque o Eric é chinês e se parece mais com eles ou se ele é melhor negociador, ou se foi realmente um achado ou ainda ele fez cagada pagando barato demais. A minha bike é dos modelos baratinhos, aqueles com pneu bem fininho que você vê velhinhos guiando no Brasil. Ela é usada e importada do Japão. Detalhe: O Eric (chinês) disse pra não compra bicicleta chinesa, apenas as japonesas. Estou indo trabalhar e passear todo dia com ela. É fantástico, a cidade é plana, tudo é razoavelmente perto, então ter uma bike te dá muita liberdade. Recomendo aos visitantes de período longo que também comprem e aos visitantes de curto prazo que aluguem. É incrível, é muito mais fácil guiar uma bike aqui do que caminhar na rua. É uma experiência emocionante e eu e o chinês maluco parecíamos crianças de tão empolgados em poder ir de um lado pro outro e também participar da bagunça..

2. Aqui é um país flexível

O extremo contrário da rigidez e sistematização é a flexibidade e desorganização. Fato, aqui é um país flexível. Ninguém vai ficar bravo porque você veio na contra-mão. Ninguém vai ficar bravo porque você parou sua moto ou carro no meio da rua. Ninguém fica bravo porque vc anda com um elefante no meio da rua e o trânsito praticamente para por causa disso. Ninguém vai reclamar se você urinar na parede em pleno dia, mesmo que você seja da polícia. Você conhece algum outro país que é meio flexível??

Prova da flexibilidade. Esse é o entorno do Orussei Market, pertinho aqui de casa. As pessoas param as milhares de motos em volta do mercado. O resultado é que todo o trânsito não flui por causa disso e daí formam aquelas maçarocas com motos, tuk tuk's, bikes, carros, pessoas e cyclos (uma cadeirinha ambulante em que o cara pedala e você fica sentado). Como um problema de lógica tudo trava e, de repente, flui.

3. Trabalho é família

É engraçado os almoços do pessoal da empresa. Desde que cheguei fui convidado todos os dias. Temos 1 hora de almoço. Quase todo mundo sai junto e o escritório fecha nesse horário. Descemos para o térreo e o pessoal corre pra pegar suas motos. Na garupa vão os mais velhos e os desmotorizados (eu). Andamos umas 4 quadras e daí vamos sempre no mesmo lugar. Mais de uma vez e de pessoas diferentes ouvi "That's our family". Aparentemente há uma grande cooperação e respeito entre eles e isso de alguma forma se reflete na hora das refeições também. Chegamos no lugar, a mulher que toca o botequim já conhece todo mundo e começa a berrar. Aí ela abre uma mesa enorme e senta todo mundo junto. Se tem muita gente não tem problema, aperta mais um pouco. Eles sempre me convidam pra escolher a comida da mesa mas eu já abri mão do direito porque não sei o que é o que então tanto faz. A forma de comer, como li hoje na internet parece bem similar às práticas da Thailândia. É dado a cada um um prato fundo pequeno, 1 colher e 1 garfo. Todos quentes e molhados e cada um seca o seu com papel. Depois disso, um deles, cada dia diferente, serve todos os outros com uma porção generosa de arroz papa e com pouco tempero. Em seguida chegam dezenas de pratos variados com pequenas porções dentre elas omeletes, ensopados de carne, de frango e de peixe, muitos vegetais variados e coisas estranhas que eu não sei o que são mas em geral tudo muito bom. Cada um então vai pegando o quanto quer de cada coisa, mas em levas pequenas e sempre deixando o suficiente para que outros possam experimentar também. Eles vão comendo, falando em khmer, não entendo nada mas sempre todo mundo rindo muito. Depois de comer, uma caneca enorme de chá gelado pra cada um e por último 1 pedaço de melancia. Um outro, também sempre em rodízio coleta o dinheiro de todos e paga à tiazinha. Feito, todo mundo sobe nas motos e voltamos pra empresa. Custo: US$ 1.

4. O que é estranho pra você pode não ser pros outros

Nossos padrões Ocidentais de alimentação repudiam uma série de coisas que são absolutamente normais aqui na Ásia. Aqui tem algumas delas, meio nojento mas no final todo mundo comeu.

Essa é a Mariana (brasileira) se preparando pra comer uma cobra no espeto. A cobra é dura (no bom sentido) e difícil de morder, é quase pura pele e osso. Não tem muita graça.

Esse é o Patro com a boca cheia de vermes. Eles têm gosto de cabeça de camarão, bem melhor do que eu esperava.

Eric com um bezourão na boca. Este é o que tem o gosto mais estranho, não consegui achar algo pra comparar.
E eu com a perna do sapo saindo da boca mas era um sapo bem magrinho lembrando rã. É muito bom na verdade! Tem gosto muito parecido com frango!!

Hoje fui jantar num restaurante coreano que fez um pouco de propaganda enganosa. Na parede do lado de fora eles anunciam pratos a US$1,50-2 mas quando você entra descobre que é apenas para o café da manhã. Anyway, vamos experimentar. Eu na verdade queria saber se tinha o tradicional cachorro (meu, to na Ásia, me deixa) mas não era típico o bastante. Aí pedi o prato mais barato, de US$3. Tinha uma espécie de polenta borrachuda de arroz, chamada Cake Rice lotada de pimenta, alguns vegetais e repolho temperado com gengibre. Gostoso mas enche. Aliás, a primeira refeição que me deixou estufado aqui porque em geral as porções são bem pequenas. Não há desperdício e não existem pessoas gordas. Acho que é uma herança dos grandes períodos de fome que a população passou na história. Mas no fim não sei se fiquei cheio pela comida ou pelo monte de água pra tentar aguentar a pimenta.

Bizarrices alimentares à parte (certeza que haverão mais), nesses últimos dias vi também outra coisa que pra mim é estranho e pra eles parece ser normal. Um nativo, e manterei o resto em sigilo para evitar qualquer confusão, começou a me ofereceu seus serviços de cafetão. Nas primeiras indiretas eu não saquei o que ele estava querendo dizer mas na segunda tentativa disse que se eu quisesse sair com alguma menina daqui era melhor consultá-lo antes que ele poderia ajudar. Além disso alertou que um professor inglês alguns anos atrás não quis buscar sua valiosa ajuda e daí a prostituta em questão utilizou uma ID falsa para acusá-lo de pedofilia fazendo chantagem para não denunciá-lo. Ele não pagou, foi denunciado e deportado para a Inglaterra. Falei pra ele que não ia precisar da ajuda porque não iria atrás disso mas ele respondeu: "But sometimes we need". Haha, e deve ser tão normal aqui que ele me ofereceu na frente de um monte de gente sem nenhum pudor.

5. Não é tão diferente quanto você imagina

Nesse começo de intercâmbio, como vocês já devem ter notado, a pessoa que eu tenho mais falado e explorado a cidade é o Eric. Não sei se porque ele chegou meio "atrasado" que nem eu do resto dos trainees, ou porque a gente mora relativamente perto, ou mesmo porque compartilhamos muitas idéias parecidas de um monte de coisa. Nós ganhamos o mesmo salário, vamos ficar pelo mesmo tempo por aqui, temos backgrounds razoavelmente parecidos, só que ele é de Guangzhou e eu de Rio Claro. Conversamos muito sobre China e Brasil e acho que esse tipo de troca é uma das coisas mais importantes de um intercâmbio. Ele é bem crítico em relação ao seu país, ao modelo de massa e tecnocrata da China. Disse que grandes mudanças já estão ocorrendo. Os salários já estão subindo, as pessoas já não estão aceitando mais tantas condições miseráveis de trabalho e cresce também a busca por liberdade de expressão. Milhares de chineses foram para o mundo afora e agora estão voltando pra lá e difundindo idéias de liberdade e democracia. Mesmo assim, curiosamente, ele é membro do Partido Comunista, o único do país, e desde quando saiu do colégio. Na verdade, algo engraçado, ele se formou entre os melhores da turma e entrou numa das faculdades mais disputadas do país. O brilhantismo foi recompensado, foi aceito no Partido que, por sinal, dele são membros boa parte da elite intelectual da China. Não pude deixar de comentar o quanto isso é diferente do Brasil e como a gente faz exatamente o contrário. Delegamos todo o poder político a quem não tem capacidade para tal. Mas fomos mais adiante e concordamos que por pior que seja Universidade não é para todos e que essa pressão da classe média por colocar todo mundo na faculdade está criando uma legião de pessoas frustradas com carreira e salários baixos porque se descobre e quer ser apenas depois de formado e não antes. Segundo ele na China está havendo uma super oferta de graduados em todos os campos e estão faltando empregos. Pense, 10% de pessoas com ensino superior no Brasil são 20 milhões, na China são 140 milhões. A escala de lá torna tudo mais complicado. Também concordamos com a tendência das pessoas buscarem a zona de conforto e o caminho conhecido. A quantidade enorme de pessoas brilhantes que vão para bancos, consultorias, etc, e que poderiam estar aplicando todo esse talento empreendendo, reinventando ou algo assim. É incrível como a mão-de-obra de maior qualidade acaba se concentrando onde ela é menos necessária. Fizemos um paralelo com os intercâmbios. As pessoas tendem a ir para onde é mais socialmente aceito, mas bonito, mais previsível. Porém, a utilidade e a necessidade dessas pessoas nesses lugares é muito menor do que em lugares como o Camboja. Enfim, esse é exatamente um dos motivos pelos quais a AIESEC foi criada. Pra que você, conhecendo e entendendo uma realidade alheia saiba que na essência humana somos todos parecidos ou até iguais e portanto guerrear, praticar xenofobia, preconceito ou qualquer outra coisa é agredir a você mesmo. 

6. Na dúvida, sorria!
Pode ter várias coisas que eu não sei falar ou fazer pra me comunicar aqui com eles. Mas tem UMA coisa que todo mundo aqui faz, com freqüência e sempre corresponde. SORRIR :) É quase estranho, como pode um povo historicamente tão sofrido, que passou por tantas desgraças humnitárias e num país tão caótico, sorrir tanto? Você pode tá falando A, querendo dizer B e eles entendendo C e não sair nada, mas sempre eles sorriem, mesmo que dê errado. Ah, e gostam de ser cumprimentados. Se você passar falando inglês alto é bem provável que ganhe um "Hello sir!" de quem estiver passando por ali, principalmente de crianças. Ah, e lógico, um sorriso!

Bom, por hoje é só! Valeu pessoal!!

Um comentário:

  1. Pronto Jão. Podemos montar uma empresa com filial na China hahaha.
    Aquele abraço!

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