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segunda-feira, 26 de março de 2012

Mas era apenas uma gorjeta


Acho que uma das experiências mais valiosas de quando a gente mora em outro país é que o 'estar fora' nos coloca automaticamente numa situação de 'estudantes' contínuos, logo, os 'poros' ficam abertos e qualquer conversa traz muito aprendizado. 

Recentemente, em uma das nossas saídas de expatriados começamos a conversar sobre gorjetas e como isso funcionava em cada país. No Brasil, o nosso pseudo "não obrigatório" 10%, na Holanda 15%, no Camboja não se espera nada mas aceitarão de bom grado uma gorjeta em qualquer valor, e na China nada também mas uma quase certeira ofensa.


Nosso amigo chinês, Zhengyu, então explicou um episódio que ele presenciou no seu país alguns anos atrás. Ele estava assessorando uma comitiva de brasileiros por lá e um deles resolveu comprar um jornal. O jornal custava certamente menos de US$0.50, mas ele tinha apenas grandes notas de yuan (moeda local chinesa), e a menor equivaleria em torno de US$10. Obviamente, pra um produto tão barato a moça que estava vendendo não tinha troco. Ele então quis deixar 'como gorjeta' o valor cheio da nota. Isso causou tanta consternação na moça, algo inconcebível, que ela no final deu o jornal a ele de graça.

Zhengyu nos explicou que 'dar gorjeta' é visto socialmente como aceitar esmola e isso é muito humilhante. Mais do que isso, no caso de uma mulher 'alvo' da gorjeta, seria visto como uma sugestão à prostituição. Segundo ele é comum que fora das áreas turísticas deixar dinheiro na mesa fará com que o garçom te chame de volta pois provavelmente 'você esqueceu'. 

Pois bem, conforme essa discussão caminha mudamos de gorjeta para esmola. Pedir esmola é certamente uma posição humilhante mas é culturalmente aceitável em boa parte do mundo. Aqui no Camboja é comum, mas tão comum quanto é no Brasil em áreas turísticas ou em grandes cidades. Quando fui para os EUA em 2010 tive uma sensação de que a presença de mendigos e moradores de rua tanto em Chicago quanto em NY era comparável ou maior do que áreas 'equivalentes' em São Paulo.

Fonte: Thought Incarnate, ironicamente discutindo porque dar esmolas
Fui para o norte do Vietnã (Hanoi, Halong Bay e Tam Coc) em novembro de 2011. Vi apenas 1 mendigo e nenhuma criança trabalhando na rua. Nada. Certamente você pode dizer que o Vietnã não é tão pobre como o Camboja, fato. O PIB per capita do Camboja é US$ 998 e o do Vietnã US$ 3,331, MAS, o do Brasil é US$ 11,845 (fonte: Wikipedia 'Southeast Asia' e Wikipedia 'List of Countries by GDP per capita'). No mínimo, não é uma questão pura e simplesmente de ser pobre ou não. Há elementos culturais em jogo. O Vietnã, por mais que invoque uma identidade cultural própria, foi província chinesa há mil anos atrás. Os elementos culturais portanto não são tão diferentes.

Há um livro, que era leitura obrigatória na faculdade, chamado 'O Código Cultural' do autor francês Clotaire Rapaille. Enquanto o livro é focado em exemplos de países desenvolvidos, especialmente EUA e da Europa, há uma estrutura lógica que diz que cada povo tem um conjunto de símbolos, crenças, etc, que recebem muitas influências e mudam ao longo dos anos mas de certa forma sempre preservando um certo núcleo. Esse núcleo é passado de geração a geração e portanto há uma 'chave/código' que desvenda e permite dialogar intimamente com cada povo. Ou seja, há um motivo porque americanos são compulsivos por carros grandes e tem leis rígidas sobre sexo e álcool ou porque os franceses têm uma dependência tão grande do Estado ou porque os alemães são tão técnicos e processuais. Ou, porque mendigar no Camboja e no Brasil é socialmente aceito enquanto no Vietnã e na China (e eu estenderia para países de cultura baseada no Confucionismo) é extremamente humilhante.


 O comportamento individual que vemos nas ruas influencia e é influenciado por esse conjunto de crenças e valores compartilhados por uma população. Seja quando deixando uma mera gorjeta, ou dando esmola, por trás disso há uma simbologia muito mais complexa. Vale a pena tentar entendê-la!

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